A Lapa de hoje, a Lapa de
outrora…
Por:
Marcio Allemand
A Lapa é
o coração cultural do Rio de Janeiro, a carteira de identidade da cidade.
E é
assim há muito tempo. Quem frequenta a Lapa? Todo mundo. É lá que as diferenças
andam juntas. É onde todo mundo é diferente, o lugar em que as tribos se
encontram, quase sempre em harmonia.
É a Lapa das histórias de Madame Satã, dos
malandros, travestis e prostitutas de ontem e de hoje.
É a Lapa de
Selarón, da energia do Perfeito Fortuna, do empreendedorismo de Léo Feijó e
Aline Brufato, do samba de Galotti, Teresa Cristina, Nilze Carvalho e tantos
outros.
O
escritor Lima Barreto, lá pelos idos de 1915, escreveu uma carta a um delegado
de polícia onde reclamava que na rua em que ele morava, a Joaquim Silva, ali
debaixo dos Arcos, estava começando uma movimentação estranha. Ele falava de
umas meninas circulando num ambiente que até então era considerado familiar,
algo inadmissível para a época. Tal carta é exemplo que marca a primeira virada
na história do bairro mais transgressor do Rio de Janeiro.
Dama da
noite
Foi por
volta de 1915 que a Lapa deixou de ser apenas um espaço diurno – com seu
comércio, seus restaurantes – e deu lugar a um ambiente notívago, boêmio, das
pensões e dos cabarés, com as francesas e seus cafetões.
É
justamente esse clima que fez com que a Lapa começasse a se diferenciar da
Praça Tiradentes e da Cinelândia, famosas já naquele tempo por seus teatros de
revista e salas de cinema. Alguns historiadores afirmam, ainda, que naquela
época não se ouvia música brasileira na Lapa.
Dizem que os bons compositores até frequentavam o bairro, como Noel Rosa, mas o
que se ouvia nesses cabarés era música francesa ou italiana.
Foi então que
começaram a surgir na rua do Lavradio e na da Carioca os cafés cantantes,
que seriam os famosos bares com música ao vivo.
“O chope gelado e bem tirado,
com ou sem colarinho, também começava a conquistar o gosto dos cariocas,
no lugar do vinho”, conta o empresário Léo Feijó, sócio de uma das casas
mais famosas da Lapa de hoje e que recentemente lançou o livro “Rio
Cultura da Noite, uma história da noite carioca”
Léo faz
questão de dizer que não é historiador, mas conhece muitas histórias da Lapa.
Sabe, por exemplo, que por lá moraram personalidades ilustres, como Machado de
Assis, Carmem Miranda e até mesmo Jorge Amado.“Era um bairro de famílias
tradicionais, principalmente na parte onde hoje está localizada a Sala Cecília
Meireles”, diz.
A Lapa
também era o ponto dos modernistas cariocas, a partir da década de 1920. Eles
frequentavam o bairro, em busca de sua atmosfera agitada. Essa vitalidade vai
até meados os anos 1940, quando começa um lento processo de decadência,
iniciado nos tempos do moralismo do Getúlio Vargas do segundo governo.
Influenciado pela esposa, dona Darcy, ele quis fechar os cabarés, acabar com a
prostituição e ordenou o fechamento dos cassinos. Não conseguiu, mas golpeou a
Lapa, que, nas quatro décadas seguintes, veria a sua vida boêmia perder o
brilho.
O Circo
chegou
Em 23 de
outubro de 1982, numa Lapa abandonada, repleta de mendigos e sem maiores
atrativos, aterrissa, num terreno ao lado dos Arcos, o Circo Voador, depois de
uma passagem meteórica de dois meses no Arpoador.
À frente da trupe, Perfeito
Fortuna, com a energia que lhe é peculiar. “Chegamos na Lapa na marra. Nós éramos
um farol nesse lugar e esse farol acarretou na recuperação do patrimônio
material e do orgulho carioca”. Passados 32 anos, Perfeito não encabeça mais o
Circo, mas administra com sucesso a Fundição Progresso, logo ao lado.
Com o
tempo, outros empreendedores foram conquistando seu espaço no bairro. Do Circo
Voador ao Bar Semente, foram 15 anos
.
Aline Brufato, atual dona do bar,
conta que conheceu o local assim que chegou de Porto Alegre,em 1998. “O Semente
tinha uma coisa rara, que era música instrumental popular e reunia desde a
Velha Guarda a Teresa Cristina, cria da casa”.
Léo Feijó
é outro nome que não pode ser esquecido quando se fala da Lapa. Chegou no
bairro no início dos anos 2000 e hoje é um dos mais respeitados empreendedores
da noite carioca. “A Lapa é um retrato fiel do Rio de Janeiro e eu quero
trabalhar para que tudo aqui melhore”, diz.
Galotti e
Krassik
E se a
Lapa é até hoje o reduto do samba, isso em parte se deve ao músico Eduardo
Galotti, que em 1996 começou a promover rodas de samba no bairro, em bares
que já não existem mais, como o Arco da Velha e o Empório 100, que
funcionava num antiquário e foi pioneiro na Rua do Lavradio.
“Foi um movimento
coletivo, não teve um só responsável por essa revitalização, essa redescoberta
da Lapa. A Lapa é de todo mundo, aqui tudo se mistura e é assim que deve ser”.
Nicolas
Krasssik, por exemplo, um violinista francês que chegou ao Rio de Janeiro em
2001 sem conhecer ninguém. Ele já estudava a música brasileira, mas não
tinha a intenção de morar por aqui. Seu único objetivo era conhecer melhor os
ritmos brasileiros. Só que um acontecimento mudou tudo em sua vida.
“Um
amigo me trouxe para conhecer a Lapa umas duas semanas depois de eu ter chegado
da França. Estava acontecendo um festival de chorinho na Sala Cecília Meireles
e eu conheci muitos músicos nessa noite, como Yamandu Costa e Zé Paulo Becker.
Fiquei louco”.
Nicolas,
que já gravou com astros como Gilberto Gil, João Bosco e Beth Carvalho, conta
que passou a frequentar a Lapa pelo menos uma vez por semana, onde encontrou
sua turma. “Eu já falava português, mas com a linguagem universal da
música, os convites foram surgindo e eu resolvi ficar. A Lapa foi meu primeiro
palco”, diz.